Mergulhe na fascinante história cultural e natural, contada pela revista Super Interessante, do estimulante que mudou para sempre o comportamento da espécie humana. Acompanha um cafezinho?       

Cafeína, a droga mais popular do mundo, a única que pode ser  comprada sem restrições por velhos, adultos e crianças, está presente  nas três bebidas mais consumidas no planeta – café, chá e Coca-Cola.  Mais que isso: a cafeína tem um antigo e respeitável prontuário de  serviços prestados à raça humana. Ela modificou a paisagem cultural,  ajudando escritores, líderes religiosos e cientistas a encontrarem  concentração, força e vitalidade. Também acelerou economias, dilatou  fronteiras geográficas e expandiu mercados, globalizando o gosto das  pessoas de Pequim a Piracicaba. E – não menos importante – foi  absolvida, nos últimos anos, da maioria de males à saúde que lhe eram  atribuídos. (O que foi encarado com absoluto alívio pelos apreciadores  da droga. A começar pelo autor desta reportagem, cafeinômano convicto e  assumido, cujas crises de abstinência – sono, lentidão e pasmaceira –  são intoleráveis.) 
A longa e animadíssima crônica da cafeína, que, em suas variadas  formas, é consumida por cerca de 90% dos seres humanos (principalmente  através da Coca-Cola, a maior fonte diária na dieta de cafeína no mundo  atual), está devidamente retraçada num livro de leitura digestiva e  repleto de histórias encorpadas e estimulantes como uma xícara de café.  The World of Caffeine: The Science and Culture of the World’s Most  Popular Drug (O mundo da cafeína: a ciência e a cultura da mais popular  droga do mundo"), dos americanos Bennet Alan Weinberg e Bonnie K.  Bealer, descomplica a trajetória do aditivo ao apresentá-lo em suas duas  personificações: a natural e a cultural. 
Observada à luz fria dos laboratórios, a cafeína pode ser apresentada  como um alcalóide composto por oito moléculas de carbono, dez de  hidrogênio, quatro de nitrogênio e duas de oxigênio. É encontrada em  bebidas como guaraná e mate, além de alimentos como chocolate. Porém,  é virtualmente impossível resumi-la nesses poucos dados objetivos. Isso  porque talvez nenhuma outra forma de nutrição tem sido tão influente nos  últimos dois milênios.
Personagem da história, da cultura, dos eventos políticos e da  ciência, a cafeína só foi "descoberta" tardiamente, já em pleno século  XIX. Em 1819, o médico alemão Friedlib Ferdinand Runge, por sugestão do  amigo Johann Wolfgang Goethe, um dos maiores escritores e intelectuais  alemães de todos os tempos, foi o primeiro cientista a isolar e nomear  moléculas de cafeína a partir de sementes de café. Mas é claro que,  desde muito antes, suas propriedades estimulantes já eram bastante  conhecidas – e responsáveis por revoluções culturais e econômicas nos  cinco continentes.
"Cada vez que tomamos uma xícara de café, estamos participando de um  dos grandes mistérios da história cultural", escrevem Bennett Alan  Weinberg e Bonnie K. Bealer, que possuem formação médica (ele) e  psicológica (ela) em boas universidades americanas e, hoje, atuam como  pesquisadores independentes e na divulgação da ciência ao grande  público. E que mistérios são esses de que falam os autores? Em meio a  uma história enevoada como fumaça de capuccino, as certezas são  pequenas. De concreto, sabe-se desde o século X que o café é um  estimulante. A descoberta deve-se a Abu Bakr Muhammad ibn Zakharia,  médico e astrônomo islâmico, que destacou os efeitos benéficos da  beberagem no corpo humano.
Muito antes desses primórdios do estudo sobre o café, os chineses já  haviam descoberto o arquirrival dessa bebida: o chá. Atribui-se ao sábio  Shen Nung (2737 a.C.) a primeira descrição precisa das propriedades  medicinais do chá. Que é, aliás, um dos princípios básicos da medicina  chinesa. O chá é tão importante para os chineses que até mesmo uma  religião – o Taoísmo – tem, na bebida, um de seus fundamentos. Lao Tsé, a  quem se atribui o estabelecimento dessa doutrina religiosa, considerava  a infusão de ervas num recipiente de água escaldante um verdadeiro  "elixir da vida". 
O cacau, outro vegetal que possui cafeína em sua composição, já era  cultivado pelos olmecas – um povo pré-colombiano que habitou  uma vasta  região nos territórios que hoje pertencem a México, El Salvador e Costa  Rica – em 1500 a.C. O método nativo de preparar chocolate variava, mas a  predileção – principalmente entre os maias – era pelo chocolate líquido  e frio. 
A Europa, porém, chegou bastante atrasada nesta história de infusões,  estimulantes e elixires à base da cafeína. Mas logo recuperou o atraso –  a ponto de ver sua cultura e economia modificadas para sempre. Trazidos  na bagagem dos primeiros exploradores do Oriente e, em seguida, dos  descobridores das Américas, chá, café e cacau provocaram um desbunde  até então inédito na história dos povos europeus. De quebra, o  café conseguiu banir da dieta diária de muitas nações o consumo  exagerado de bebidas alcoólicas, que fazia populações inteiras  mergulharem num lodaçal espesso de lentidão, tontura e falta de  produtividade. Desde então, as nações européias (principalmente aquelas  ilhas de gelo e civilização situadas mais ao norte do continente) são  absolutamente fanáticas por café. Eis a cafeína como uma tremenda  esquina em termos econômicos: ela ajudou a impulsionar o notável  desenvolvimento desses países.
Na copa do mundo do consumo per capita de café, três países lideraram  o ranking de 2000, de acordo com dados da Organização Mundial de Café:  Finlândia (10 quilos por ano por pessoa), Suécia (8 quilos) e Suíça (7  quilos). O Brasil, pátria do cafezinho consumido no balcão do botequim e  que já foi o maior produtor mundial de sementes, aparece em 7º lugar,  com um consumo de 4,5 quilos por pessoa. Nos Estados Unidos, onde 60% da  população consome algum tipo de alimento com cafeína diariamente e  crianças ingerem balas com a substância para aumentar o rendimento na  escola, o consumo de café em 2000 foi de 4 quilos per capita. 
Mas quando François Procope, um florentino exilado na França, abriu  as portas do primeiro café do mundo, no distante ano de 1689 – o Le  Procope, estabelecimento ainda hoje em atividade ali na esquina da  Comédie Française, em Paris –, as nações européias já estavam fissuradas  em cafeína. O surgimento dos cafés serviu para inaugurar todo um clima  cultural. Desde a época da sua fundação até hoje, cafés tradicionais  como o Le Procope até o cybercafé do seu bairro têm sido a arena  privilegiada do debate político e intelectual. 
Escritores como Honoré de Balzac (cuja morte é atribuída ao  esgotamento causado por noites turbinadas com café), Victor Hugo, Samuel  Johnson e Jean Paul Sartre gestaram muitas de suas idéias nos ambientes  enfumaçados dos café parisienses e londrinos. Líderes políticos como o  revolucionário francês Robespierre, o nazista Adolf Hitler (que curtiu a  mocidade nos famosos cafés vienenses da Belle Époque) e o comunista  russo Lênin tramaram conchavos em torno de xícaras fumegantes. Porque  café, assim como estava escrito nos encartes dos discos de vinil na  década de 70, "também é cultura". 
É significativo, como alertam Weinberg e Bealer, que a palavra  café seja praticamente igual em todos os idiomas. Sinal da absoluta  popularidade da bebida, que acabou transmitindo esse tremendo ibope à  Coca-Cola e ao chocolate, vocábulos que também circulam praticamente sem  tradução entre todas as comunidades lingüísticas da Terra. 
O chocolate, por sinal, foi tardiamente aclimatado ao gosto europeu. O  navegador genovês Cristóvão Colombo foi, em sua quarta expedição pelo  Atlântico, em 1502, o primeiro homem branco a conhecer sementes de  cacau. Logo, o rei da Espanha, Carlos V, estava desfrutando da  irresistível mescla de chocolate com açúcar. Era o que faltava para  iniciar a popularização do derivado de cacau que, até então, era  utilizado com parcimônia pelas nações pré-colombianas. 
Mas o chocolate em barra – altamente estimulante se combinado com uma  xícara de café, como sabe qualquer estudante que precisa varar noites  insones – só pôde surgir com a invenção da manteiga de cacau por um  holandês, em 1828. Sucesso instantâneo da forma mais gostosa de energia.  Na Primeira Guerra, entre os alimentos que compunham a ração diária de  um soldado americano figurava (junto com chá e café) uma reluzente barra  de chocolate Hershey’s.
Durante séculos, no entanto, o consumo de bebidas e alimentos com  cafeína foi alvo de acirrados debates científicos. É uma refrega muito  parecida com aquela que versa hoje sobre o consumo de maconha, uma droga  considerada leve e que apresenta alguns pontos positivos se bem  administrada em certos tipos de pacientes. Desde o século XVIII, pelo  menos, médicos e cientistas discutem acerca dos benefícios e malefícios  da cafeína.  
É claro que, isolada em laboratório e administrada sem cuidado (10  gramas é o suficiente), a cafeína pode ser fatal. Uma overdose de 100  expressos cremosos é capaz de acelerar o coração e provocar um enfarto.  Em 1999, um jovem americano morreu após ingerir 90 pílulas de cafeína – o  equivalente a 25 litros de café. Haja estômago... Mas são raríssimos os  casos de superdosagem na literatura médica.
A cafeína tem mexido muito com o mundo científico. Vários mitos que a  cercam caíram por terra nos últimos anos. Muitos cientistas já não  acreditam mais num suposto elemento cancerígeno do aditivo. Pesquisas  recentes comprovam que os benefícios do consumo de cafeína ganham de  goleada dos supostos malefícios. Por exemplo, ela é um poderoso  bronco-dilatador em pacientes com asma (segredo que os povos autóctones  dos Andes, que mastigam folhas de coca – que não possui cafeína mas  também é um alcalóide – para suportar a altitude, já conhecem há  milênios). Estimula a produção de calor no corpo humano, o que talvez  explique alguns efeitos emagrecedores se consumida durante as refeições,  principalmente sob forma de café.
Estudos liderados pelo cientista Mark Klebanoff, do National  Institutes of Health, nos Estados Unidos, desvinculam o consumo moderado  de cafeína de males como aborto. "Porém, nossas pesquisas demonstram  que um consumo de cinco xícaras diárias ou mais de café pode representar  riscos para a gravidez", diz Klebanoff. Consumida sem exageros, cafeína  não causa nenhum dano ao feto, afirma o pesquisador.
Cafeína poderia ainda prevenir Mal de Parkinson. Michael  Schwarzschild, do Hospital Geral de Boston, Massachusets, conseguiu  demonstrar que a cafeína reduz a perda de dopamina, neurotransmissor  afetado pela doença. Camundongos que haviam perdido até 85% de dopamina,  recuperaram 60% depois que os cientistas injetaram o aditivo neles. A  conclusão é que consumidores habituais de café estariam mais  resguardados de desenvolver a doença. Mas a medicina não chegou ainda a  veredictos irrevogáveis sobre os vínculos entre cafeína e menos  incidência da doença.
Outra boa notícia é que a ciência desvinculou o consumo de café e  outras bebidas cafeinadas a encrencas com o coração. "O risco de  problemas cardíacos ocorre apenas para pessoas com problemas  cardiovasculares", afirma o médico Darcy Roberto Lima, professor do  Instituto de Neurologia da UFRJ e professor-associado no Instituto de  Estudos do Café da Universidade de Vanderbilt, no Estado do Tennessee,  Estados Unidos. Para exemplificar sua defesa do café, Lima cita o caso  do craque brasileiro Romário, consumidor de dez cafezinhos diários. (Só  é de estranhar que, depois de tanta cafeína no sangue, Romário continue  ali parado na linha do gol, à espera da bola, em vez de percorrer o  gramado atrás dela como um galgo no cio.)
Entusiasta do café – bebida cuja composição possui no máximo 2,5% de  cafeína, contra o chá, que apresenta até 3,5% do alcalóide –, Lima é um  apologista militante do "preto que satisfaz". Sob sua inspiração tramita  atualmente no Congresso Nacional, em Brasília, o Projeto de Lei nº  5130/2001, do deputado Elias Murad, que determina a obrigatoriedade da  presença de café no cardápio da merenda dos alunos da rede pública. A  justificativa do projeto baseia-se nas conclusões colhidas pelo médico  brasileiro durante mais de 15 anos de pesquisa sobre a atuação positiva  da cafeína na saúde humana.
O poder estimulante da cafeína é encarado com desconforto no universo  dos esportes olímpicos. Em 1962, o Comitê Olímpico Internacional (COI)  decidiu restringir o uso de cafeína nos atletas a uma quantidade de 15  miligramas/litro. Até hoje, o aditivo faz parte do código de antidoping  do COI, ao lado de outros estimulantes como a efedrina e a cocaína.  Desde a determinação do Comitê, há 40 anos, apenas um atleta foi  desqualificado por apresentar até 15 miligramas (o mesmo que uma taça de  chá) de cafeína por litro de urina: um pentatleta australiano durante  as Olimpíadas de Seul, na Coréia do Sul, em 1988. 
Os efeitos negativos ou pouco recomendáveis da cafeína (como  aparecimento de úlceras) e incidência de enxaquecas são quase que  completamente eclipsados por sua importância na história, nas idéias, na  religião, na cultura, na economia e na ciência. Nenhuma droga até hoje  mereceu tamanha consideração ou recebeu tanta importância no  desenvolvimento humano. Sem café, chá, chocolate e Coca-Cola, o mundo  seria completamente diferente. É provável que fôssemos todos bem menos  animados. Mais uma xícara?